É com imensa satisfação que apresentamos o dossiê "Gênero e Interseccionalidade na História Antiga". Trata-se de uma produção coletiva que reflete a ambição do trabalho do Messalinas, o Grupo de Estudos sobre Gênero e Sexualidade na Antiguidade (www.messalinas.fflch.usp.br), ligado ao LEIR-MA-USP (Laboratório de Estudos sobre o Império Romano e Mediterrâneo Antigo da USP). O Messalinas vem buscando, desde seu surgimento, em 2014, aprimorar o diálogo aberto com diferentes abordagens e temas, tendo como eixo central o gênero na Antiguidade. O grupo, que inicialmente contava apenas com pesquisadores do LEIR, se expandiu e hoje inclui pesquisas desenvolvidas em pelo menos cinco universidades (USP, UNESP, UFBA, UFRJ, Oxford) nas áreas de História, Arqueologia e Letras, bem como de outros Laboratórios de pesquisa, se mostrando como profícuo espaço multidisciplinar de cooperação acadêmica. 

Importante ressaltar que, considerando a produção acadêmica em nível nacional e internacional, este não figura como o primeiro dossiê discutindo o gênero no mundo antigo, e, sabemos, também não será o último. Entretanto, o presente dossiê se coloca como um marco no escopo de produção da Revista Mare Nostrum, assinalando os dez anos de atuação da Revista. Ao mesmo tempo que o tema do gênero vive uma nova onda na academia europeia e estadunidense, o Brasil se junta ao debate. Acreditamos que a nossa contribuição aos estudos da Antiguidade e aos estudos de gênero se dá em dois níveis. O primeiro, por mostrar que o tema ainda desperta interesse para a pesquisa nas diversas sociedades do mundo antigo, num amplo recorte cronológico. Num segundo nível, esse interesse se manifesta, juntamente com a multiplicidade de temas, na complexidade metodológica que os estudos de gênero exigem. A variedade das fontes históricas apresentadas neste dossiê, de textos à cultura material, demonstra o potencial do gênero como ferramenta metodológica. Trata-se, nesse escopo, de salientar o seu aspecto relacional que viabiliza o entendimento das sociedades e seus modos de organização.  Ele expõe ao mesmo tempo categorias de organização do mundo antigo e da nossa sociedade contemporânea, apontando para os limites da pesquisa histórica. Mais ainda, reforça a necessidade de ajustar o aporte teórico-metodológico que potencialize o diálogo entre as fontes, pesquisadores e as questões da pesquisa. 

Se por um lado o gênero, como campo de estudo, surgiu da história das mulheres, ele não se limita a isso. Ainda que muitas pesquisas da área privilegiem as mulheres como categoria central nas análises, é fundamental problematizar também uma pesquisa de contornos ginocêntricos, a fim de não ignorar os demais sistemas de organização e classificação sexuados em que os indivíduos operam. Assim, os estudos sobre masculinidade são também necessários a fim de apontar alguns limites e problemas do próprio feminismo. Como apontou Marilyn Strathern em The Gender of the Gift: problems with women and problems with society in Melanesia (1988),  assim como a categoria “mulheres” não é universal, o feminismo transformou os “homens” numa categoria monolítica. Assim, a inclusão de pesquisas sobre a masculinidade reforça o jogo de tensões e negociações sociais dentro do campo do gênero, sublinhando a necessidade de uma análise acima de tudo relacional. 

Se o gênero reforça, portanto, o aspecto relacional, em que medida ele dialoga com outros elementos que compõem as identidades? De que maneira ele nos informa sobre outras categorias sociais que estão em jogo num determinado conjunto de relações sociais? É nessa perspectiva que a interseccionalidade ganha força nas discussões, ela potencializa que outras categorias, tais como status, idade, etnicidade, entrem na análise e as hierarquias de organização possam ser visibilizadas e compreendidas. Nesse sentido, o gênero não existe sozinho, como já afirmava Judith Butler em Gender Trouble (1999). É preciso levar em conta de que modo ele aciona e é acionado nas redes de relações de indivíduos e grupos.

O termo interseccionalidade ganhou popularidade nos últimos 20 anos e tem sido usado de diversas maneiras pelas humanidades (e.g. Hill Collins e Bilge, 2016). Se inicialmente ele ganhou força com as feministas negras nos Estados Unidos entre as décadas de 1960 e 1970, desafiando as premissas do movimento feminista em geral, ele foi usado em larga escala no Sul Global sem necessariamente fazer referência ao termo. Como categoria analítica, interseccionalidade pretendia inicialmente resolver a fragmentação das identidades e grupos dos movimentos sociais que não eram sempre representados nas pautas de luta. O reconhecimento dos muitos grupos minorizados obrigou cientistas sociais a repensarem suas categorias de análise, contemplando a diversidade e a complexidade dos indivíduos em suas redes de relações e papeis sociais. Assim, interseccionalidade se tornou um modo de entender os diversos eixos de organização e divisão de uma determinada sociedade. 

Nessa perspectiva, mais do que dizer o que é interseccionalidade, é preciso dizer o que ela faz, portanto, como instrumento analítico. Pesquisadores brasileiros estão, em muitos sentidos, numa situação privilegiada para pensar o tema, uma vez que as pautas levantadas pelos movimentos feministas - tanto acadêmicas como no ativismo - há muito chamam a atenção para a necessidade de se olhar a situação de mulheres negras e outros grupos minorizados, por exemplo. Ainda há muito por fazer. 

A História Antiga, ainda vista por muitos com uma área da pesquisa histórica elitista e descolada da realidade, vem se beneficiando dos estudos subalternos, apresentando um novo conjunto de fontes e também novas perspectivas sobre as sociedades antigas. A História Antiga também deve continuar se beneficiando dos estudos de gênero a partir de uma perspectiva interseccional a fim de favorecer a visibilização e o entendimento dos mais variados tipos de divisão e organização sociais. A crítica interseccional se dá justamente quando entendemos que indivíduos fazem parte do sistema de organização do mundo em que vivem, criando-o e reproduzindo-o, e simultaneamente, reagindo a ele. Se por um lado a fragmentação dos sujeitos, explorada pelos movimentos pós-modernos, potencializa a diversidade das abordagens e temas, também aponta limites das fontes que precisam ser situadas em seus contextos sócio-culturais e materiais. 

Na perspectiva interseccional, o gênero sai do seu gueto e amplia o entendimento da organização social. Ele deixa de ser um tema “de mulheres”, “sobre mulheres” ou ainda “para mulheres” e passa a ser um elemento-chave para entender como sistemas sexuados de classificação se formam, se desenvolvem e se manifestam. Ele sublinha ainda os perigos de abordagens anacrônicas e nos estimula a buscar definições êmicas no fazer histórico, salientando nuances e complexidades. 

Este dossiê apresenta uma série de trabalhos que demonstram a riqueza e a variedade de perspectivas. No cenário nacional, a experiência dos pesquisadores brasileiros que trabalham com o mundo antigo expõe a complexidade de sistemas de gênero nas diversas sociedades para além dos binarismos, podendo contribuir assim para o debate interseccional do campo na atualidade. A História Antiga não entra apenas como instrumental para pensar questões do presente, mas para (re)pensar as próprias metodologias dos estudos de gênero e do fazer histórico. 

Nessa perspectiva, o trabalho de Stephanie Budin (ASOR) “Sex and Gender and Sex” problematiza a discussão do dimorfismo sexual e do binarismo de gênero, sobretudo no âmbito da segunda onda feminista. Budin explora as contradições e limites do debate feminista a partir da experiência do gênero fluido em sociedades orientais apresentando estudos de caso que incluem a Mesopotâmia, Albânia e a Índia antigas. A autora chama a atenção para o processo da desconstrução do binômio sexo-gênero defendido pelo movimento feminista que, a contrapartida, levou em parte ao apagamento progressivo das categorias “homens” e “mulheres” e as suas consequências políticas. 

O artigo de Guilherme Borges Pires (Universidade Nova de Lisboa)  “Pode um deus dar à luz? Msj nos Hinos Religiosos do Império Novo egípcio (c. 1539-1077 a.C.): para uma (re)avaliação da ‘androginia’ da divindade criadora” também explora o binômio sexo-gênero nos textos religiosos egípcios. Pires destaca como o contexto reprodutivo egípcio é pensado a partir de um dimorfismo sexual, mas manifestado para além de categorias biológicas, como é o caso do uso do termo msj nos textos cosmogônicos. 

Ainda no campo da antiguidade oriental, o trabalho de Anita Fattori (USP) “Atuação de mulheres assírias nas redes de comércio inter-regional do II milênio AEC: possibilidades de abordagens de gênero nos estudos da Antiga Mesopotâmia” destaca a importância do enquadramento específico dos sistemas de gênero para entender as mulheres na antiga sociedade mesopotâmica a partir das cartas. Esses documentos, vistos a partir de uma perspectiva interseccional, inserem as mulheres dentro de um sistema complexo de relações sociais, políticas e comerciais que nos permite ter uma visão mais nuançada dos papeis de gênero nesses contextos. 

No artigo intitulado "Retorno ao fragmento 31: tradução, gênero e sexualidade", Letticia Batista Rodrigues Leite (UNICAMP-Sorbonne) apresenta um estudo do poema considerado como um dos mais famosos de Safo de Lesbos. A partir da análise do original e de traduções do fragmento 31, a autora problematiza a heteronormatização como elemento que evidencia as intersecções na produção acadêmica recente. Nesse sentido, propõe uma interessante reflexão a respeito das marcas de gênero da voz poética enunciadora e das personagens colocadas em cena no referido poema, apontando para os possíveis horizontes de leitura e suas consequências políticas

Em seguida, transitando de forma interseccional entre as denominadas antiguidades oriental e ocidental, no artigo "Representação e poder: a mulher que falou através de Apolo nas Histórias de Heródoto", Isabela Casellato Torres (UNESP) explora as representações de mulheres gregas e persas como conselheiras de assuntos bélicos na obra de Heródoto. A pesquisadora trabalha com a hipótese de que o historiador grego considerava mulheres gregas e persas como mantenedoras da ordem político-social, colocando-as em um mesmo patamar de atuação. 

Por sua vez, Marina Pereira Outeiro (UERJ) analisa, em “‘O amor que nós temos é terrível’: os contatos entre as realezas grega e cuxita manifestos na união de Perseu e Andrômeda”, as duas versões da peça Andrômeda, a de Eurípides e a de Sófocles, bem como evidências visuais de origem cerâmica. A partir destes documentos, nota a autora ser possível perceber como práticas matrimoniais evidenciam, para além de questões relativas à sucessão dinástica e ao gênero, uma rede mediterrânica de contatos e de alianças entre gregos e cuxitas.

Na sequência, no artigo "Dejanira e a morte no leito: considerações sobre gênero e matrimônio na tragédia As traquínias, de Sófocles" Mateus Dagios (UFRGS) analisa o discurso da personagem sofocliana Dejanira, apontando de que forma o status da mulher é apresentado relacionado ao matrimônio. A partir da análise de aspectos concernentes ao gênero literário da tragédia grega, o autor apresenta um estudo acerca das motivações da personagem, explorando as possibilidades de uma abordagem de gênero. 

Em “Educação, Gênero e Interseccionalidade na literatura augustana”, Renata Cerqueira Barbosa (IFPR) discute a educação feminina no período augustano. Especial ênfase é dada à figura de Sulpícia, autora do período e cujos textos sobreviveram parcialmente incorporados ao corpus elegíaco de Tibulo. Como demonstra Barbosa, a partir de uma perspectiva interseccional e ao explorar, por um lado, como se tensionam o status social da autora e topoi literários específicos de sua literatura elegíaca, é possível constatar, assim, a complexidade e ambiguidade que cercam a figura de Sulpícia.

Em “As moedas das mulheres imperiais”, Taís Pagoto Bélo (USP) debruça-se sobre um tipo particular de evidência, as moedas cunhadas entre as épocas de Augusto e Nero, para estudar as representações femininas na numismática deste período. A autora trabalha com a hipótese de que as representações femininas, ainda que obtivessem o consentimento do princeps para serem cunhadas em moedas, eram de tal sorte controladas que atendiam a objetivos políticos e sociais em que se observa uma marcada perspectiva androcêntrica. 

No artigo intitulado “’Por que de galo, então, chamamos quem se castra [...]?’: interseccionalidade em representações de sacerdotes castrados no Império Romano”, a autora, Semíramis Corsi Silva (UFSM), analisa uma série de representações textuais de sacerdotes envolvidos em práticas rituais nas quais ocorria castração de órgãos genitais. Castrados, estes sacerdotes, como argumenta a autora, passariam por um processo de transgenerização para o feminino que implicava, além de uma transformação de gênero em decorrência da perda de virilidade, a intersecção com categorias de status jurídico (como a de uir, o cidadão romano pleno em direitos) e com construções culturais relativas ao outro não greco-romano. 

A seguir, Ana Carolina Pedroso Alteparmakian (USP), em "O mito de Tristão e Isolda inscrito na Antiguidade: contribuições teórico-metodológicas para além da Idade Média", nos apresenta uma reflexão sobre a categoria da "mulher medieval", apontando para seu caráter monolítico e generalizante, revelando a construção de estereótipos femininos que se fazem presentes tanto nos documentos quanto na historiografia. Dessa forma, a autora trabalha com a recepção de mitos da Antiguidade no período da Idade Média, com objetivo de contextualizar a personagem feminina Isolda, compreendendo de que forma o estereótipo da "mulher celta", construído desde a Antiguidade, se inscreve nas tramas ficcionais, revelando a intersecção e a tensão entre ideais femininos e as relações sociais.

Encerram o presente volume da Mare Nostrum um artigo de tema livre e duas resenhas. Em “Mudanças climáticas e a construção de cisternas micênicas (1300 a.C.-1200 a.C.)”, Gustavo Peixoto, atentando-se para dados paleoclimáticos e para a instabilidade geopolítica nas pequenas cidades micênicas da Argólida, busca compreender dinâmicas envolvidas na construção de um sistema subterrâneo de cisternas. Finalmente, Juan Gerardi apresenta-nos, na primeira resenha, a obra Democracia, pasión de multitudes, de J. Gallego e C. Fernández (2014), que busca revalorizar as emoções das multidões na democracia ateniense. Já Geraldo Rosolen Jr., por sua vez, resenha a obra Die Vandalen: Aufstieg Und Fall Eines Barbarenreichs, de R. Steinacher (2016), que explora a história dos povos vândalos, bem como o uso de fontes romanas para compreendê-la.

No momento atual em que muitos direitos e liberdades se encontram ainda ameaçados, tanto no Brasil como no mundo, este dossiê pretende chamar a atenção para o papel dos intelectuais na academia e na sociedade. A questão do gênero não pode ser vista apenas como restrita exclusivamente à história das mulheres cisgêneras (e brancas), nem como à temática gay e transgênera. É preciso que o campo nos ajude a pensar em políticas igualitárias de inclusão reconhecendo as diferenças. A diversidade deve estimular a reflexão do fazer histórico, o que inclui, sobretudo, uma maior reflexão das práticas acadêmicas, dos modelos de organização dos conteúdos, da divisão do trabalho entre colegas, da melhor representatividade dos grupos minorizados em ambientes de discussão e publicações, do respeito do desafiar intelectual e de um ambiente mais inclusivo e solidário. 

Essas são as ambições do Messalinas com esse número. 

Boa leitura!

 

Os Editores: 

Sarah Azevedo (Universidade de São Paulo)

Fabrício Sparvoli (Universidade de São Paulo)

Thais Rocha da Silva (University of Oxford)

 

Referências:

Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. 10th anniversary ed. Routledge.

Hill Collins, P.; Bilge, S. (2016). Intersectionality. Polity Press.

Strathern, M. (1988). The gender of the gift: problems with women and problems with society in Melanesia. University of California Press.